domingo, outubro 28, 2007

Notas sobre a psicobiologia dos peixes

1. Um aquário sobre a mesa
Um pequeno aquário, com um único peixinho vermelho dentro.

2. O aquário cai no chão
Não está claro o que teria provocado a queda do aquário - alguém o teria empurrado? (a sala estava vazia) Um terremoto teria feito a mesa balançar? (terremoto no Rio de Janeiro?) Um vento? (todas as janelas estavam fechadas) O próprio peixinho teria empurrado o aquário fazendo uso de uma força indizível? (talvez a opção mais plausível)

3. O aquário espatifado
O chão molhado; cacos de vidro pra todos os lados; o peixinho agonizando, agonizando, agoni...

- A situação do peixe era a seguinte: ele vivia fora de seu habitat natural, confinado num espaço mínimo, desumano (os pássaros engaiolados sabem do que estou falando), alimentado com uma ração barata pela empregada da casa, que não tinha obrigação de entender nada sobre peixes. A criança que o ganhara há muito que não se interessava mais por ele, e os outros habitantes da casa nunca se interessaram mesmo.
Se foi a casualidade que derrubou o aquário da mesa, pode-se dizer que o destino não fez mais que selar a sorte daquele triste animal, contribuindo, por assim dizer, para o fim mais rápido de sua medíocre existência. Se foi o próprio peixinho que, com força indizível, derrubou o aquário, podemos especular que ele o fez por dois motivos prováveis:
a) Para encerrar, ele mesmo, com sua agonia de vivente sem sentido;
b) Acreditando que, ao quebrar o aquário, ele estaria livre para fugir daquela vida.
Em ambos os casos, devemos considerar o esforço, o engenho e a coragem do peixinho. Afinal, quem já ouviu falar de um peixe que tenha derrubado o próprio aquário da mesa? A diferença entre a primeira e a segunda opção está na intenção, sem dúvida, mas também no maior ou menor grau de conhecimento que o peixe teria sobre sua própria natureza. Ter empurrado o aquário para cometer suicídio mostraria que o peixe sabia das consequências de seu ato. Mas se ele empurrou o aquário com o intuito de se libertar, significa um desconhecimento de si mesmo, total ignorância de sua natureza, de suas limitações. Porque, nesse caso, o peixe não saberia que, quebrando o aquário, ele expulsaria e espalharia o meio aquoso necessário a sua sobrevivência ("Quebrar o aquário", ele teria pensado, "romper as cercas que me aprisionam, desfazer os limites". E morreu).

4. A criança chega ao local da tragédia
Num ato de lamento e compaixão, a menina dona do peixe recolhe o bichinho do chão. Quer dar a ele um enterro digno, com caixão de pote de margarina (ainda está cheio, mas a mãe vai entender que foi por uma boa causa), cruz de palito de sorvete (terá que tomar dois sorvetes de uma vez, mas é pelo peixinho) e vela de bolo de aniversário (seu aniversário foi há poucas semanas atrás).

5. O gato da menina
Um dos motivos que explicam o desinteresse da menina pelo peixe é que ela ganhou um gato de presente de aniversário.

6. A menina decide brincar com seu gato
Peixe é bonito, mas não dá pra brincar com ele. Isso também explica o desinsteresse da menina. Gato é bonito, dá pra brincar, passar a mão... (uma vez, ela quis tirar o peixinho do aquário pra passa os dedos pelo seu corpinho. O pai chegou bem na hora em que a meina estava tentando catar o bicho da água. Mas agora, pensando bem, se o pai tivesse chegado na sala um pouco depois, com o peixinho já fora do aquário, na mão da menina, o pobre animal teria percebido que fora do meio aquoso ele não conseguiria respirar. Isso teria feito com que ele desistisse da idéia de empurrar o aquário - claro, supondo que foi ele quem empurrou a bolota de vidro e pelo motivo "b", ou seja, para ver-se livre). Ela não vai nunca deixar de brincar e de cuidar de seu gatinho, isso ela jurou para seu pai e foi assim que o convenceu a comprar o bichano.

7. O gato come o peixe
A brincadeira da menina com o gato foi assim: "Tóoum, dúvido que você pegue esse peixinho com a boca. Du-vi-de-o-dó!" E atirou o peixe na cara do gato. Depois de piscar cinquenta vezes com o olho direito - onde a cabeça do peixe bateu - Tom deu uma cheirada no cadáver e o engoliu, não sem antes dar umas boas mastigadas.
O peixe já estava morto mesmo. E o gatinho parecia faminto. Ela estava a caminho do enterro, mas... Ah, peixe não tem alma. Ou tem?

8. A mulher no divã
A mulher conta ao analista um fato curioso de sua infância, quando certa vez seu aquário despencou, sozinho, da mesa da sala. "Peixe tem alma?", ela pergunta ao analista. "Só Deus sabe", ele responde brincando (é um analista muito bem humorado, diga-se de passagem).

2 comentários:

ana disse...

Faltou uma possibilidade: e se o aquário que tivesse se jogado da mesa? Quem sabe para matar o peixe - habitante indesejado, quem sabe pra se matar, quem sabe.

Mariana Kaufman disse...

fica claro que, no fim das contas, a menina (que depois será mais uma mulher no divã) finalmente resolvera não escutar os conselhos de seu pai, tirou o peixe do aquário para acariciá-lo, o gato, excitado com o peixinho saltitante nas mãos da menina, num ágil e rápido salto, derruba o aquário no chão e a menina, em um misto de susto e culpa, vendo que a gaiola de seu peixe já não mais existe, o entrega ao seu amigo gato, na intenção de que este pudesse ajudá-la, e este, rapidamente e feliz, engole o pobre (e inconsciente de sua condição, ou não) peixinho. Tudo isso se torna muito drástico e pesado para a menina que cria para si mesma (e para os pais, claro) uma outra história mais leve e mais fantástica.
A menina agora, mais uma mulher diante de seu analista, está prestes e desvendar, nas próximas sessões, a real versão dos fatos deste triste episódio de sua infância. Como será que ela vai reagir?


Adorei! bjs