quarta-feira, setembro 26, 2007

Entulhos

Costumava achar suas preocupações as mais fúteis que um ser humano poderia ter, mas não parava de pensar nelas: se a mulher o estava traindo com seu primo de segundo grau, se o filho "emo" era o viadinho da classe, se o cargo seria ocupado pelo colega mais jovem e mais arrojado, se o Dodô, pego no exame antidoping, iria desfalcar o Botafogo pelo resto do campeonato brasileiro...
Quando moleque, olhava pro céu e ficava tentando desenhar um mapa com todas as constelações que conseguia enxergar (o Cruzeiro do Sul e As três Marias foram as primeiras a serem descobertas e desenhadas). Também gastava horas tentando fazer um copo de geléia cair da mesa apenas com o poder da mente. Mas foi com a leitura do primeiro livro adulto, "Eram os deuses astronautas?", que as portas da percepção lhe foram abertas (sem falar nas músicas de Raul Seixas, que casaram direitinho com sua vontade de entrar numa nave espacial, sumir da face da Terra e só voltar quando tivesse descoberto as verdades do universo - ou, ao menos, como fazer para mover um copo de geléia apenas com o poder da mente).
Seguramente há um desvio de rota em sua existência, que deve ter acontecido ali pelos 17 anos, quando começou a fazer cursinho pré-vestibular e a luta por um lugar ao sol perdeu de vez o sentido literal. Outro dia, até deu um tapa no baseado de um conhecido do trabalho, mas a sua única viagem foi se imaginar na cama, porque deu uma lombeira...
Mas as coisas podem mudar, claro, sempre podem mudar. O papel de exame em sua mão, a mulher sorrindo na sua frente, a notícia de que seria pai novamente - indícios de mudança, porque um filho significa, entre outras coisas, a possibilidade de recomeçar do zero, de aprender enquanto ensina, de enxergar o mundo com olhos de inocência, de descoberta, de deslumbramento: uma alma pura, que iria purificar a sua alma já entulhada de bobagens de toda espécie. Esperança.
O diabo é que não parava de pensar que o filho não era seu, mas sim de seu primo de segundo grau.

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